Urubus na Serra da Capivara, por Luiz Fernando Ramos

     O coletivo “Urubus” viveu uma experiência única no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Sul do Piauí. Reunião de jovens artistas que atuam nos campos da performance e da fotografia, da pintura e do grafite, da música e do vídeo, o coletivo viveu três semanas imerso no Parque, acampando nos seus principais sítios. Cientes do privilégio de habitarem um espaço de visitação regulada e inspirados pelas riquezas arqueológicas contidas nos sítios visitados – trinta mil inscrições rupestres e o mais promissor acervo de vestígios do homem primitivo das Américas-, os urubus programaram um ciclo extenso de vivências no período de imersão e uma série de “apresentações”, no momento exatamente posterior à imersão no parque, diante das comunidades que vivem às suas margens, no perímetro do município de São Raimundo Nonato.
      É a partir do contato com o coletivo na última semana de imersão, e do acompanhamento do acervo de fotos e experiências que acumularam desde sua entrada no parque, que se tecem aqui alguns comentários. É um olhar de fora do grupo que compartilha fragmentos de sua experiência dentro do parque e, portanto, está contaminado pela própria dinâmica ali desenvolvida.
      A experiência dos urubus na Serra da Capivara configura um processo colaborativo singular, em que as ações desse coletivo de artistas não confluem para uma obra única, em que convergem todos os seus esforços e fecha, ou sintetiza suas participações individuais. É um coletivo de artistas que atuam com certa autonomia e tem nesse propósito o seu intento comum. Assim, mais do que uma obra, espetáculo ou performance, gera-se uma plêiade de “produções” ou reverberações concretas, que tanto podem se encadear como se atomizarem individualmente. Ao mesmo tempo, nessa proposta de trabalho está em jogo uma tensão, ou uma questão não resolvida a priori, entre possíveis métodos aglutinadores e as projeções estéticas implícitas a eles. Quer dizer, a operação de um sistema aberto como este pode envolver opções distintas. Uma poderia ser a existência de um conceito artístico forte que irradiasse diversos olhares a partir dele, como ocorria, por exemplo, no histórico grupo Fluxus. Outra poderia ser a partir de uma liderança isolada, que impusesse um projeto comum aos seus colaboradores, cujo melhor exemplo no campo da artes cênicas brasileiras talvez fosse o teatro Oficina. Uma terceira alternativa para se gerar uma coesão mínima necessária poderia ser, como parece ter sido o caso do coletivo Urubus, a adoção de práticas rituais e de convívio que confirmariam a identidade do grupo e dilatariam o seu sentido coletivo, aproximando-o da situação paradigmática das andorinhas em processo de vôo organizado, mas capazes, eventualmente, de se arremessarem separadamente.
       Tal opção estratégica do coletivo se reflete no seu interesse por conhecer e dominar habilidades associadas ao xamanismo e à sabedoria oriental. Este foco, inclusive, determina o padrão de trabalho físico que praticam – Kempô, Ioga, escaladas – e de trabalho espiritual – práticas xamânicas, ritualizações com o uso da ayhuasca. Se estes recursos aglutinadores conseguem, mobilizar talentos individuais de diversos naipes, no sentido de concentrar energias e garantir a prontidão necessária a uma ação coletiva coordenada, podem, também, numa ótica modernista que valorize a ruptura, enfraquecer a potência estética do projeto. Se todo o objetivo se volta para uma celebração apaziguadora e catártica do ato de se estar reunido, resta pouco espaço para as tensões e provocações sem as quais nenhum processo artístico decola. Quer dizer, a harmonia e a paz de espírito são conquistas coletivas do grupo, enquanto suas conquistas individuais, até para serem coerentes com a idéia de um coletivo aberto cuja produção é pulverizada, dependeriam da diferença e da fricção entre as partes, fosse pela afirmação de idiossincrasias ou pelo lançar-se em risco no vazio de um vôo solitário. Nunca por meio de uma consciência generalizada, imposta pelo rito ou pela supressão das identidades, e sim, na autoconsciência possível de cada um em diálogo com o todo. O melhor exemplo dessa autonomia saudável das partes frente a força coercitiva do todo lhes foi dado no Baixão das Andorinhas, sítio renomado da Serra da Capivara, onde todas as tardes um espetáculo se repete. Ali, numa combinação de rigor absoluto do coletivo e de plena autonomia das partes, uma a uma as andorinhas arremetem para as grutas abissais do cânion. Como a corda de um arco tensionada, é a curva realizada pela revoada do bando que propicia a cada andorinha irradiar-se pela tangente como seta célere para o fundo do abismo.
       Por outro lado, se admitir-se o pressuposto de uma nova perspectiva para a arte, ainda reverberando a radicalidade modernista, mas contemporaneamente operando não por fricção e desmontagem e sim por contigüidade e relação, a imersão dos urubus se alinha com uma tradição recente no campo das artes visuais. Assim, a vivência no parque Nacional da Serra da Capivara, desprovida de um clímax ou resultado estético fechado, mas apenas espraiada para as periferias daquele território protegido, quase em um derramamento involuntário dos magmas que o coletivo mobilizou, sintoniza em cheio com o que Nicolas Borriaud e sua “estética relacional” reconhecem como “interstício social” de subjetividade. Neste olhar, para além de uma afirmação isolada do binômio artista/obra, expandem-se esses limites para a situação intersubjetiva de co-autorias, quando o binômio artista/receptor remete a “ex-obra” à condição de tempo de encontro, desmantelando os estratagemas de reificação do mercado e produzindo rearranjos duráveis de possibilidades de vida e de insubmissão ao isolamento das subjetividades como ilhas ordenadas. Ao contrário, como sugeriu Heiner Muller, essas novos trabalhos, menos obras e mais aberturas ao reencontro das subjetividades, tornam-se “ilhas de desordem”. Assim, o coletivo “Urubus”, no convívio em condições extremas, ou inseguras, no parque, se permitiria um movimento de habitação radical, não rompendo estruturas, mas flexibilizando hábitos e procedimentos e inventando novas relações, imprevistas, entre si e com as comunidades que confrontou.
      Entre uma perspectiva crítica que mira as potências produzidas pelo coletivo na ótica modernista clássica, e reconhece no coletivo Urubus limitações na coesão estabelecida por um liame religioso vago e facilitador, e outra que reconhece as intuições que amalgamam essa iniciativa como expressando uma tendência histórica já consagrada – a estética relacional – opta-se por escapar da armadilha de uma oposição binária e perceber os aspectos específicos desta realização, que o constituem enquanto objeto de prática artística e cultural singular e ampliam, também, as possibilidades de leitura de fenômenos com tais características.  

                              Ciclos míticos e cirandas profanas

        O projeto original da imersão desdobrou-se em uma quase dramaturgia, a funcionar como uma armação estrutural que sustentasse a concretização das ações. Esse roteiro era aberto, preenchido com listas de objetos, atitudes e projeções imaginárias do que se supunha pudesse ocorrer. As linhas gerais estabeleciam três ciclos de experiências de cinco dias cada: o da vida, o da morte e o das estrelas. Na prática, os três ciclos foram realizados, cada um com procedimentos próprios, mas com elementos comuns em sua operação e revestidos de referências míticas.
         Assim, o ciclo da vida envolveu todo o tipo de articulação sensória entre o coletivo e os ambientes naturais do parque. Aqueles membros do coletivo que atuam propriamente como atores/performers experimentaram, por exemplo, passar vinte e quatro horas vendados percorrendo trilhas e escalando pedras íngremes, sempre com a parceria de algum outro participante como guia. Estas e outras ações que visavam potencializar os sentidos e acirrar as disponibilidades corporais marcaram essa primeira fase do trabalho, em que a proposta era explorar as relações dos corpos com o espaço externo. No ciclo da Morte a orientação, também aos atores/performers, era no sentido oposto de uma interiorização, e da experiência de preparar uma morte simbólica, inclusive com a escolha de um sítio do parque para as cerimônias de enterramento, que ocorreram de acordo com as opções de cada um. No ciclo final, das estrelas, o estímulo foi no sentido de uma mirada mais espiritualizada, voltada para o céu e para a transcendência dos corpos. No caso destes três ciclos míticos repetiram-se alguns procedimentos paralelos, envolvendo os demais artistas e respondendo à proposta geral da imersão. Tudo foi registrado em mais de três mil fotografias e seqüências de vídeo, mas, mais do que documentação, o que caracterizou a produção estética em curso foram alguns suportes que já vinham sendo utilizados no repertório de ações públicas do coletivo. Um deles, que se repetiu nos três ciclos, foi o momento das pinturas corporais.
      Dois artistas do coletivo realizaram, com motivos adequados a cada um dos ciclos, pinturas nos corpos dos atores/performers, cobrindo-os completamente. Essa prática dos “corpos pintados”, que já fora realizada pelo coletivo em outras performances públicas em ambientes urbanos, ocorria agora no recato de um floresta protegida, típica da caatinga em seu esplendor de inverno, quando as chuvas tornam todas as árvores verdes e a fauna sente-se a vontade para aparecer. Corpos inteiramente nus e pintados, assemelhando-se aos bichos no ciclo da vida, confundidos com a vegetação no ciclo da morte e contrastados com o parque no terceiro ciclo. Com caráter ritual, de prática interna ao grupo, essas performances corporais não se confundiram com apresentações, com exceção do ciclo das estrelas, cujo fecho implicou no contato com uma comunidade vizinha do parque. De fato, em todos os ciclos, além das pinturas, o processo culminou com a produção de mandalas feitas à base de galhos, folhas, pedras e outros elementos colhidos no parque, que se inscreviam sub-reptícias em alguns de seus sítios, sujeitas apenas à desmontagem que os elementos naturais da chuva e do vento por certo providenciarão.
     Outra produção notável que acompanhou cada um dos ciclos, sempre com nuances próprias, foram os registros animados de elementos da imersão. Feitos a partir da técnica do “light painting”, ou seja, do uso de super exposição em câmara fotográfica para captar desenhos realizados com a luz de lanternas e, numa seqüência quadro a quadro, criar movimento e animação, estes registros envolveram sempre a participação de grafiteiros e pintores operando uma lanterna e do fotógrafo do coletivo. Estes desenhos animados, feitos à base da materialidade da floresta e das interações do coletivo com ela, envolveram desde ações corporais até diálogos com as inscrições rupestres espalhadas pelas paredes dos cânions do parque. Numa das mais interessantes, o conjuminar da ação do grafiteiro com a técnica do fotógrafo, fez-se com que uma inscrição estática de homem primitivo munido de uma lança se tornasse um feixe de luz e, ganhando vida, concretizasse o arremesso do artefato. Esta animação contida em suporte digital é um exemplo perfeito do tipo de “obra” residual que a ação do coletivo na imersão gerou.    
     Além da realização dos ciclos e dos procedimentos criativos que os acompanharam, outro aspecto decisivo, e que colaborou na conformação da experiência, foi todo o tempo de convívio que o coletivo experimentou e as práticas desenvolvidas para preenchê-lo. Nos quase vinte dias de internação, artistas que não tinham necessariamente afinidades pessoais, além da familiaridade de outras ações já realizadas, tiveram que coexistir em condições de excepcionalidade. O isolamento no parque, com uma estrutura de alimentação e de moradia mais próxima da de um acampamento, mesmo quando utilizando algumas das casas que costumam servir arqueólogos e cientistas em trabalhos de campo, obrigava a uma disciplina e compartilhamento permanentes. A marca mais constante desse cotidiano de privações, e que se repetiu ao longo dos três ciclos, foi a fogueira todas as noites, numa espécie de assembléia tácita para enfrentar as tensões subliminares e repactuar os propósitos da imersão. Nesse momento, que se desdobrava sempre em duas partes – uma primeira de preleção e escuta de todas as vozes e uma segunda de cantos e danças extáticas – todo o projeto era revisto e as energias que o alimentavam recarregadas. Nessa vivência em condições extremas, agravada por episódios de confrontação com perigos reais – vários escorpiões achados dentro de botas, cobras cruzando pelos caminhos, onças prováveis assombrando os sonhos em barracas desguarnecidas – o coletivo experimentou, pode-se dizer, estados alterados de consciência. Neste distanciamento das condições normais de vida, que se aprofundava nas práticas rituais durante os ciclos e nas vivências extáticas na fogueira, os artistas envolvidos imergiram numa vivência inédita. Mais do que produzir ações, ainda que as tenham produzido tanto isoladamente como nos contatos posteriores com as comunidades locais, administrou-se um rito de passagem existencial alterando em cada um de seus participantes seu estado anterior.
     Na combinação dos ciclos míticos e das cirandas profanas, em torno das diversas fogueiras que se acenderam durante a imersão, o coletivo operou menos para produzir e mostrar e mais para se auto-transformar, numa operação endógena de superação e purificação. Quando se abriu, em três momentos, a vivências junto às comunidades de ex-moradores do parque, agora habitando suas franjas, e à realidade urbana do município de São Raimundo Nonato, que abriga o parque, os Urubus mais trocaram experiências que promoveram espetáculos. Retomaram a prática dos corpos pintados, que implica sempre em um se dar a ver, mas é econômica nas ações expositivas e busca interatividade, realizaram grafites e, de algum modo, procuraram incitar naquelas comunidades um novo olhar para o Parque Nacional da Serra da Capivara. Não é propriamente um resultado, que se meça em termos produtivos, mas coloca em questão uma perspectiva interessante para se pensar a dimensão estética contemporaneamente, e nos remete de volta às questões e dicotomia propostas no início desta leitura.
     Se partirmos da definição de “espectador emancipado” de Jacques Ranciére, no que ela mina a separação entre os que sabem e os que não sabem, ou entre os que agem e os que olham, e que dá aos eventuais assistentes a condição de plenos agentes, intérpretes ativos, as ações do coletivo Urubus, dentro e fora do parque configuram um legítimo paradigma de fruição estética. No âmbito interno, de suas práticas de convívio e de experimentação ritual realizaram ações vivas, que expressaram “possibilidades de vida”, no sentido em que Borriaud evoca Nietzsche, e que mesmo pulverizadas nos desdobramentos que cada um deles levará para suas existências pessoais, são lídimas produções artísticas. No âmbito externo, nas apresentações e intervenções nos espaços urbanos visitados, transcendem as posições tradicionais entre mostradores e espectadores e geram uma comunidade espontânea, provisória, que é cúmplice na vivência proposta e que amalgama ambos os campos de visão. Assim, as tensões sociais e políticas nutridas no âmago de um projeto como o do Parque Nacional da Serra da Capivara, bem como todos os tesouros arqueológicos e naturais que ele encerra são reprocessados nessa encenação de convívio. Primeiro mítica, no encontro do coletivo com o passado milenar das pedras e inscrições ali contidas e posteriormente social, na aproximação de uma população distanciada dos valores e sentidos que o parque vem representando contemporaneamente.
      Talvez o modelo de apropriação conceitual de uma experiência como a do coletivo Urubus não seja nem a modernista, estrito senso, focada na obra que rompe e inaugura tradições, nem a dita “estética relacional”, desobrigada de se fazer produto e temporalizada no instante. O que operou ali, e salta aos olhos como singular, foi uma co-habitação de diferenças em todos os níveis, tanto as internas ao grupo, como externas entre ele e as comunidades contatadas, aplainadas em prol de uma clarificação dos horizontes. Foi uma ação sem finalidades explícitas e que promoveu naqueles que a acompanharam uma acolhida desinteressada, mas que implicou em uma limpeza dos ambientes envolvidos, natural e social, desimpedindo os caminhos. Sabe-se que o urubu é uma ave higienizadora. Suas práticas gustativas no lixo e na carniça putrefata resultam numa limpeza geral do ambiente. Os ares que sobrevoa são depurados de miasmas fétidos, ainda que ele incomode pelo que indica ou refere. Mas é garantia que a sujeira não permanecerá intocada, nem os cadáveres ignorados. Na pior das hipóteses, e honrando o totem que adotaram, os urubus higienizaram as relações entre o Parque Nacional da Serra da Capivara e as populações que o circunscrevem e purificaram os ares em que detiveram os seus vôos circulares.   


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